Impossibilidade de prisão do depositário infiel
No dia três de dezembro de 2008, o STF, por maioria do Plenário, arquivou o Recurso Extraordinário nº 349.703 e, por unanimidade, negou provimento ao RE 466343. Ambos discutiam a prisão civil de alienante fiduciário infiel. Baseado no artigo 5º, inciso LXVII, da Constituição Federal, estendeu a proibição de prisão civil por dívida, prevista, à hipótese de infidelidade no depósito de bens e, por analogia, também à alienação fiduciária, tratada nos dois recursos.
Consequentemente, revogou a Súmula 619, do STF, segundo a qual "a prisão do depositário judicial pode ser decretada no próprio processo em que se constituiu o encargo, independentemente da propositura de ação de depósito".
O ministro Carlos Alberto Menezes Direito defendeu a prisão do depositário judicial infiel. Entretanto, como foi voto vencido, advertiu que, neste caso, o Tribunal teria de revogar a Súmula 619, o que acabou ocorrendo.
Na discussão sobre o assunto prevaleceu o entendimento de que o direito à liberdade é um dos direitos humanos fundamentais priorizados pela Constituição Federal e que sua privação somente pode ocorrer em casos excepcionalíssimos. E, no entendimento de todos os ministros presentes à sessão, neste caso não se enquadra a prisão civil por dívida.
A tese hoje majoritária, no Plenário, atribui status supralegal (acima da legislação ordinária) aos tratados sobre Direitos Humanos, situando-os, no entanto, em nível abaixo da Constituição. Essa corrente, no entanto, admite dar a eles status de constitucionalidade, se votados pela mesma sistemática das emendas constitucionais pelo Congresso Nacional, ou seja: maioria de dois terços, em dois turnos de votação, conforme previsto no parágrafo 3º, acrescido pela Emenda Constitucional nº 45/2004 ao artigo 5º da Constituição Federal.
O Pacto de São José da Costa Rica sobre Direitos Humanos, ratificado pelo Brasil em 1992, proíbe, em seu artigo 7º, parágrafo 7º, a prisão civil por dívida, excetuando, apenas, o devedor voluntário de pensão alimentícia.
O mesmo ocorre com o artigo 11 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, patrocinado em 1966 pela Organização das Nações Unidas (ONU), ao qual o Brasil aderiu em 1990. Inclusive a Declaração Americana dos Direitos da Pessoa Humana, firmada em 1948, em Bogotá (Colômbia), com a participação do Brasil, já previa esta proibição, enquanto a Constituição brasileira de 1988 ainda recepcionou legislação antiga sobre o assunto.
A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, realizada em Viena (Áustria), em 1993, com participação ativa da delegação brasileira, então chefiada pelo ex-ministro da Justiça e ministro aposentado do STF Maurício Corrêa, também tratou fo fim da prisão civil por dívida.
Sob tais argumentos, o STF entendeu por bem estender a proibição da prisão civil por dívida ao depositário infiel.
Repercussões nas ações de execução fiscal
Tal decisão trará grandes impactos nas ações de execução fiscal em andamento e nas que vierem a ser propostas.
Uma das possíveis conseqüências que poderão advir da proibição da prisão, será a não satisfação da obrigação para com o fisco. Vejamos por quê.
O próximo passo após a citação do executado em execução fiscal é o pagamento da dívida ou nomeação de bens à penhora, conforme o artigo 8º, caput da Lei 6.830/80 (LEF). Permanecendo o executado inerte, o próximo passo será a expedição de mandado de intimação, penhora e demais atos executórios.
Quando um bem é penhorado, seja por indicação do próprio executado ou por ato do oficial de justiça, há que se nomear um depositário, o qual assumirá o compromisso de guarda e conservação dos bens e, quando demandando, entrega dos mesmos para que sejam levados a leilão.
Antes da decisão do Supremo aqui discutida, o depositário, uma vez chamado a entregar os bens penhorados, e não o fazendo, era considerado infiel e sua prisão poderia ser decretada, como forma de coagi-lo.
Todavia, a partir do dia 03/12/2008, tal medida coercitiva não mais poderá ser utilizada.
Uma das possíveis conseqüências será a não satisfação da obrigação fiscal. Não havendo sanção, o depositário poderá não se sentir na obrigação de entregar os bens penhorados, o que prejudicará o andamento da ação de execução. Novo mandado de penhora deverá ser expedido ou o próprio executado poderá indicar novo bem à penhora. Tudo isso acarretará em um grande atraso para a ação de execução ou, até mesmo, em sua frustração. A arrecadação fiscal será prejudicada e isso poderá vir a trazer conseqüências para toda a sociedade, tendo em vista que as políticas públicas são custeadas com a arrecadação dos tributos.
Alternativas
Uma possível solução será obedecer com maior fidelidade, a ordem de preferência para nomeação de bens à penhora, estabelecida no artigo 11 da LEF. O primeiro item trazido pelo artigo é que a penhora recaia sobre dinheiro.
A lei, tanto a LEF quanto o Código de Processo Civil (CPC), traz diversas hipóteses de penhora sobre dinheiro.
A primeira delas é a decretação pelo juiz, a pedido da exeqüente, da penhora on line. Referido instituto vem previsto no artigo 655-A, do CPC:
Art. 655-A. "Para possibilitar a penhora de dinheiro em depósito ou aplicação financeira, o juiz, a requerimento do exeqüente, requisitará à autoridade supervisora do sistema bancário, preferencialmente por meio eletrônico, informações sobre a existência de ativos em nome do executado, podendo no mesmo ato determinar sua indisponibilidade, até o valor indicado na execução". (Incluído pela Lei nº 11.382, de 2006).
Tal medida vem sendo muito utilizada nas ações de execução fiscal, por ter se mostrado eficiente. A partir de agora, com o entendimento pela proibição da prisão do depositário infiel, a penhora on line é instituto que se mostra capaz de garantir a satisfação do débito, uma vez que independe de nomeação de depositário e pode recair tanto em execuções movidas contra pessoas física ou jurídica.
Além da penhora on line, outra forma de satisfazer a obrigação, fazendo com que a constrição recaia sobre dinheiro, é a penhora sobre o faturamento da empresa, desde que a parte executada seja pessoa jurídica. A previsão dessa medida está também no citado artigo 655-A, em seu §3º. Vejamos:
Art. 655-A (...)
(...)
§3o "Na penhora de percentual do faturamento da empresa executada, será nomeado depositário, com a atribuição de submeter à aprovação judicial a forma de efetivação da constrição, bem como de prestar contas mensalmente, entregando ao exeqüente as quantias recebidas, a fim de serem imputadas no pagamento da dívida". (Incluído pela Lei nº 11.382, de 2006).
Apesar de obedecer a ordem estabelecida pelo art. 11 da LEF, a penhora sobre faturamento demanda a nomeação de depositário, podendo também acarretar na não satisfação do débito.
Portanto, tal medida, apesar de, em tese, se mostrar mais eficaz do que a nomeação, v.g., de um bem móvel, não é a melhor alternativa a ser adotada.
Por fim, cabe discutir sobre a viabilidade de se aplicar, futuramente, a multa diária, prevista no artigo 461, §4º, do CPC, ao depositário infiel. Tal medida pode ser uma alternativa à prisão.
O artigo 461 do CPC diz:
Art. 461. "Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou, se procedente o pedido, determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento". (Redação dada pela Lei nº 8.952, de 13.12.1994)
(...)
§ 4o "O juiz poderá, na hipótese do parágrafo anterior ou na sentença, impor multa diária ao réu, independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando-lhe prazo razoável para o cumprimento do preceito". (Incluído pela Lei nº 8.952, de 13.12.1994)
O depositário assume o encargo de guardar e conservar os bem penhorados. Esse encargo constitui uma verdadeira obrigação de fazer. Sendo assim, perfeitamente cabível a imposição de astreinte, a partir do momento em que ele é chamado a entregar os bens e não o faz.
Nesse caso, o juiz, a pedido da parte ou de ofício, imporá multa diária ao depositário. Uma vez não entregue os bens, a multa será executada e o valor arrecadado revertido à satisfação da obrigação fiscal discutida.
Encontra-se, assim, uma maneira alternativa, mas não menos eficaz, de saldar a dívida.
Há, portanto, que se pensar sobre os aspectos práticos da execução da multa diária.